. "MAR ADENTRO" E A EUTANÁS...
Ramón Sampedro viajou por todo o mundo como marinheiro. Conhecia o mar como ninguém, mas um dia a sorte atraiçoou-o. Num mergulho igual a tantos outros, bateu com a cabeça num fundo de areia, ficando tetraplégico.
Fica nesta situação 28 anos, 28 anos de cama sem conseguir mexer nada abaixo do pescoço, 28 anos de luta contra o que acreditava ser o seu direito, ter uma morte digna.
Mar Adentro conta-nos muito mais do que a “simples” história de um homem tetraplégico, fala-nos do desespero deste homem que sente que já viveu tempo demais e não quer ser um peso durante o resto da sua vida para a sua família. Os familiares não compreendem a vontade de Ramón porque o amam e não o querem perder.
O filme conta-nos como duas mulheres entram na vida de Ramón, uma é a advogada que apoia a sua causa, e outra tenta a todo o custo fazer crer a Ramón que vale a pena viver. No entanto, Ramón não procura alguém que o ame para o prender à vida, procura alguém que o ame a ponto de o ajudar a morrer.
Tudo isto é misturado num cocktail de emoções fortes, que nos levam a ponderar até que ponto uma pessoa tem ou não direito a decidir acerca da sua vida? Porque é que este homem não pode morrer, se é essa a sua vontade?
Porque hoje é dia das mentiras pareceu-me bastante adequado escrever sobre um dos filmes que vi, nos últimos tempos, e que mais me marcou : “A Minha Vida Sem Mim.” É um filme que nos permite reflectir sobre a vida e, sobretudo, sobre a morte, particularmente quando ela nos é antecipadamente anunciada. Quando deixamos de nos sentir alguém presente, para nos sentirmos apenas um quase eterno passado. Quando a vida parece uma verdadeira mentira, na qual nos tentámos iludir. Quando deixamos de ser vida, de ser projectos a longo prazo, de ser objectivos, para sermos meses, talvez semanas… Quando apenas a morte é certa. E de tal forma certa que, simplesmente, se perde a força de viver. Porque sabemos, mais do que nunca, que será em vão…
Tudo começou com uma indisposição e um desmaio. No hospital, depois de muitos exames, e de o médico ter ido com ela para uma sala e se ter sentado ao seu lado, informa-a de que tem um tumor nos dois ovários, que atingiu o estômago e começa a espalhar-se pelo fígado. Além disso, é muito nova, motivo pelo qual as células se multiplicam mais rapidamente, e não poderão fazer muito por ela.
“- Ann, se tivesse mais anos espalhar-se-ia mais lentamente e podíamos operar. Mas… As suas células são muito jovens, demasiado jovens e receio que não possamos fazer nada.
- Quanto tempo?
- Dois meses, talvez três.”
O médico acaba por confessar o motivo que o fez vir para ali, em vez de lhe dar a notícia no seu próprio consultório. Afinal como é que um médico informa um paciente de que vai morrer?
“Não consigo sentar-me diante duma pessoa e dizer-lhe que vai morrer.”
O médico dá-lhe uns folhetos informativos, e umas receitas que ajudam a aliviar as náuseas. Quando chega a casa Ann mente à família, diz tratar-se de anemia. Perante a certeza da morte, Ann vai pensando na sua vida. Sempre ao lado do mesmo homem, Don. De quem engravidou ainda muito nova e com quem vive, juntamente com as suas duas filhas, numa velha e pequena caravana.
Ann vai escrever uma lista de coisas que deve fazer antes de morrer, vai projectar a sua vida sem ela, com a plena consciência de que a vida não lhe reserva já um lugar, o futuro lhe não pertence - “Things to do before I die”:
“1. Dizer às minhas filhas que as amo várias vezes ao dia.
2. Arranjar ao Don uma nova mulher de quem as meninas gostem.
3. Gravar mensagens de parabéns para as meninas até aos 18 anos.
4. Irmos à praia juntos e fazermos um grande piquenique.
5. Fumar e beber tanto quanto eu quiser.
6. Dizer o que penso.
7. Fazer amor com outros homens para ver como é.
8. Fazer alguém apaixonar-se por mim.
9. Ir ver o meu pai à prisão.
10. Pôr unhas postiças (e dar um jeito ao cabelo).”
Esta lista evidencia o desejo de alguém que sabe que vai morrer. E como essa certeza é cruel. Ann coloca como tarefas tudo aquilo que nunca fez (fazer amor com outro homem ou fazê-lo apaixonar-se por si), ou o que deveria ter feito mais vezes (dizer às filhas que as ama, ir à praia, ir ver o pai, ter um novo visual) ou ainda preparar um futuro sem ela (gravar mensagens para as filhas e arranjar uma namorada para o Don).
Evidencia também a necessidade de afecto.
“Mas nem todas as drogas do mundo vão alterar a sensação de que a tua vida foi um sonho do qual só agora acordas.”
Ann acaba por conhecer Lee e iniciar uma estranha relação. Ela passeia com ele, ele lê-lhe livros, encontram-se cada vez com mais frequência.
“As capacidades dela desaparecem uma a uma e não há noite nem estrelas, apenas uma cave donde ela nunca pode sair e onde mais ninguém pode ficar. Dão-lhe medicamentos que lhe fazem mal, mas que a impedem de morrer. Por algum tempo. Eles estão assustados. Eu estou assustado.”
(livro de John Berger lido por Lee).
Até que Lee lhe revela que está apaixonado por ela, que se sente muitíssimo mal quando a vê partir com o marido e que chora por ela, que quer viver o resto da sua vida com ela, tratar das suas filhas, ser feliz ao seu lado. Ela percebe que foi longe de mais. E nunca mais vai ter com ele pois sabe que o fará sofrer ainda mais.
Ann acaba por deixar também uma mensagem a Don dizendo que o ama e uma mensagem a Lee para que ele saiba que ela se apaixonou verdadeiramente por ele. Mas ela nunca cedeu, nunca disse a ninguém que estava a morrer…
“Havia de ter a sensatez de não folhear os álbuns de fotografias; mas não conseguiria deixar de visualizar as imagens que tinha na cabeça – dos momentos desperdiçados porque se supunham infinitos, das noites em que os dois, cansados, se tinham contentado com uma breve carícia em vez de um enlace impetuoso, voltando as costas um ao outro e dispondo-se a um sono gratificante, na convicção total de que ambos teriam outra oportunidade, no dia seguinte, ou no sábado de manhã. Todas essas oportunidades tinham sido enfiadas numa bola de trapos, que um destino indiferente se encarregara de arremessar para bem longe.”
Jacquelyn Mitchard, Um Natal que não esquecemos